sexta-feira, 1 de março de 2013

[Continho] A Cuíca Rasta de São Gonçalo do Amarante


Existe um índio velho em São Gonçalo do Amarante - uma cidadezinha no interior do RN - que, certa vez, fez um pacto com um Exu desses, de encruzilhada, pra ser o melhor instrumentista do mundo. Almejava fama e fortuna, além do reconhecimento internacional. Malandro que só ele, estava mais interessando na fama do que nos termos exatos do pedido.

"-Quero ser o maior instrumentista do mundo!", disse. Sendo o Exu, bem, uma entidade do capeta, ele aceitou o acordo e tornou o rapaz o melhor instrumentista do mundo.

Com uma cuíca.

Enfurecido com a ironia na perda de sua alma - "Onde já se viu cuiquêro famoso, djábo?!?!!- o jovem se voltou à Religião, na esperança de trapacear o Exu de volta. Tentou cavar uma vaguinha no paraíso na forma mais malandra possível: Elevaria louvores sublimes aos céus, todo domingo, acompanhando a homilia com sua indefectível Cuíca. Esperava que Deus ouvisse e, com sorte, o devolvesse sua imortal essência. 

Só tinha um problema: a danada da cuíca não casava com nenhum hino gospel. Por mais que tentasse, todos os irmãos ojerizavam e ridicularizavam a Cuíca pra Jesus do Irmão de São Gonçalo. Determinado, resolveu mudar de igreja, para ver se resolveria o problema. Necas. Tentou mudar pra Católica. Necas. Adventista?  Nada. Assembléia?. Nem tocou. Batista? O Pastor não deixa. Universal? Precisava de depósito prévio e o índio velho era liso.

Depois de migrar por todas as congregações, desiludido, nosso índio velho pensou em suicídio. Decidiu morrer na cachaça, afogar suas mágoas e sua derrota na maior esbórnia possível. Partir em grande estilo, bebaço e num glorioso solo de 3 horas de cuíca.

Eis que a caminho do bar, já pensando no derradeiro repertório de seu "canto dos cisnes" (Adoniran Barbosa, Nelson Gonçalves, Velha Guarda...) passou de frente a uma casa de onde saía uma música diferente, mais sincopada, cadenciada. 

Quando parou para ouvir, foi convidado pelos frequentadores a participar da movimentação que lá havia. Era uma espécie de templo, mas os louvores eram mais abrangentes e havia mais fumaça também. Uma religião onde ainda se queimavam ervas como modo de levar o pensamento a Deus. Lá ouviu a mensagem do Dread Lyon, e aceitou Hailiel Selessiah como filho de Jah e seu salvador pessoal. 

Em um estupor induzido pelas fumaças do local, teve a visão: -É aqui que vão me aceitar!  - É aqui que, igual Ojuara, eu vou puxar o rabo do Exú! Vou largar o dedo onde as costas do tranca-rua muda de nome! Féladaputa!

Tornou-se Rastafári. Com cuíca e tudo.

Entrou no templo e, dias depois, devidamente irmanado e crescendo seus dreadlocks, migrou juntamente com sua denominação para uma fazenda entocada nas brenhas de São Gonçalo.

Diz-se que hoje em dia toca na comunidade Shangri-la Nova Era Natty Dread Holística de São Gonçalo do Amarante, adicionando sua magistral cuíca à batida do one drop para Jah Rastafári.

E começou a circular um desafio, à boca pequena do povo, de que quem achar a Comunidade e conseguir vencer a cuíca rasta do índio velho de São Gonçalo do Amarante em um duelo de instrumentos, além de ser considerado "TRUE" pelo "MOVIMENTO", conseguirá bem-aventurança e sucesso profissional por 7 anos.

Verdade verdadeira.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

[literatura] Gerras invisíveis, conflitos subentendidos & batalhas hipotéticas


{Advertência: as estórias de frost, o cronista do improvável, não são relatos de um jogo ou personagens de RPG: é uma ideia maluca que me assombra há bons 10 anos e que resolvi exorcizar só agora (sou lerdo com as coisas). Então é "literatura", em sentido lato, sem influência de rolagens ou ideias de outros jogadores. Ou seja, enquanto as outras personagens funcionam como ponto de vista onde eu traduzo as ocorrências do jogo, aqui Frost é uma personagem que pertence a si própria, não depende da sorte dos dados rolados em minha mesa e tem sua história fechadinha e predefinida, independente de intervenções alheias. Como toda estória interessante.}

Livro 01 - Frost livre

Prelúdio

Como traduzir em palavras algo que não sei articular direito? Como fazer compreender as delícias e desgraças da minha história, se no caminho topei com tantas coisas que desafiam a compreensão que a simples memória de tais eventos altera minha neuroquímica a ponto de eu ter que sentar para que o mundo pare de girar?

É bom começar do começo, suponho.

"-Tudo começou com uma partida de RPG..."

Era uma noite de quarta-feira. Noite do bom e velho G.U.R.P.S.. O mestre da vez era o Rodrigo. Jogávamos algo que Rodrigo classificava como "cyberpunk-devagar-favelado": uma campanha em níveis tecnológicos elevados, num futuro próximo, porém menos tecnológico que o esperado para o futuro próximo. 

Nesse cenário, éramos os heróis da favelinha, correndo nas sombras contra o mundo capitalista, fazendo ecoterrorismo e, de quebra, adiantando a agenda de algum grupo neossocialista da rede, algo assim. É, eu sei: o Rodrigo é um tremendo sequelado pra viajar nessas coisas. acho que a graça do jogo taí, nessa associação inusitada das coisas.

Em última análise, acho que meu costume em lidar com o esquisito vem desde cedo, com o grupo do Rodrigo, e foi o que me permitiu manter a cabeça no lugar ao conviver com a galerinha que vive no próximo mundo depois do espelho. Uma turminha “ixpérta” que faz a rainha da Alice parecer uma tia da escola, de tão careta.

Mas, divago - pra variar só um pouquinho. Por certo, pela perda de sangue.

Então, favela, rock'n'roll, porradaria e extração de algum figurão científico do conforto de sua velha-empresa-gaiola para o conforto da nova-empresa-jaula. Parece a mesma coisa, mas um olho treinado sabe a diferença: gaiolas são para passarinhos, ao passo que jaulas abrigam animais maiores e mais perigosos... leões.

Então, meu personagem era o porradeiro do grupo, um misto de “artista marcial zen” com “santo da espada”, só que por espada entenda 3 metralhadoras .50 superpesadas e por zen entenda pavio curto mesmo. Meu boneco era um cara chatinho de se opor em combate, especialmente porque eu consegui desencavar uma regra cinematográfica de um suplemento raro que me permitia atirar com as duas mãos ao mesmo tempo, mirando em dois alvos diferentes, enquanto fazia malabares com as 3 armas. 

Estranho? Certamente. Apelão? De doer; mas inválida? Não senhor.

Basicamente, com um teste de “sacar rápido”, meu personagem conseguia mandar a primeira arma pro ar, enquanto que com um teste secundário eu sacava as outras duas, atirava ao mesmo tempo, no mesmo turno, e no final jogava a metranca da mão direita pra cima e a da mão esquerda pra direita, enquanto pegava com a mão esquerda a arma que lancei no início, caída perfeitamente na altura da minha mão esquerda.

Antes de ser acusado de combismo, digo que gastei, 250 pontos em perícias, 138 em vantagens, 9 em perks e R$ 16 em stellinhas artois pra convencer o mestre a permitir a sequência. E há quem diga que RPG não é um jogo social...
[continua...]

Mastigos, a manopla do dominador



[Situação: reincarnada no mundo, mas dormente]
[Atual hospedeiro: Mircea Cioran.]
[nível de poder: 0,0001%]
[potencial de desastre: 87% e subindo... ]

Seu nobre nascimento

A vida é difícil no vale da floresta do uivo. Há neve demais, gente de menos e mais infortúnio do que se pode suportar. Um nobre de uma casa menor, ao Senhor do Forte Pavor foi dado o vale em recompensa de seus atos de bravura na última guerra travada pelo baronato contra os malditos mouros. Dada a ferocidade em batalha de Cioran e sua falta explícita de melindres corteses, o barão à época deu-lhe um posto avançado e longe da corte, na esperança de afastá-lo sem, contudo, desonrá-lo. 

Enviou a dinastia Cioran para o vale e mandou que cuidasse do local e treinasse a próxima geração de marechais para o Baronato. E assim procedeu Mallus Cioran, no ano de 850 DC. Desde então, senhor após senhor do forte pavor vem cumprindo este intento: preparando combatentes e treinando-os para a guerra no modo rude dos Cioran.

Após uma campanha bem sucedida para expulsar os cães germânicos e saxões de suas terras, o senhor Dimitri foi recompensado com um casamento com a filha mais nova da família Donovan, um rico clã comerciante, responsável principalmente pela extração e comércio de minérios e especiarias. 

O senhor dos Donovan desejava ardentemente o poderio militar dos Cioran, então realizou o casamento sem muitas dificuldades: o prestígio dos Donovan levou os Cioran de volta para a corte, enquanto que em troca os Cioran fornecem os melhores guardas que a Transilvânia pode prover. Além do mais, o vale do Cárpatos tornou-se rota comercial, além de ter havido o início da mineração das escarpas e montanhas, ricas em ferro e ouro.

Com o casamento, também foi aberta uma rota comercial através da floresta uivante. Caravanas começaram a cortar caminho pela floresta, diminuindo em uma semana as viagens para a rota das especiarias, visto que antes tinham que contornar todo o vale, por medo das criaturas que lá habitam. O então senhor dos Cioran, Fandral, determinou a abertura da rota e a criação de postos de apoio, devidamente fortificados, o que foi realizado de pronto. Ainda, determinou que as caravanas fossem escoltadas em todo o percurso por soldados leais aos Cioran, por um módico preço.

Feito isso, senhor Fandral mudou-se com sua família para a Corte e deixou seu único filho, Dimitri, administrando o ducado. Para assegurar mais a aliança entre as famílias Donovan e Cioran, Fandral casou Dimitri com Alísia, a prima de sua esposa. 

Após um breve período de adaptação, eis que Alísia pari gêmeos, um sinal muito forte do destino do casal. Isso porque para os transilvâeos, os gêmeos são uma bênção e uma maldição simultaneamente: o primeiro nascido é obviamente destinado a grandes feitos, enquanto que o segundo é o repositório do erro, destinado ao mal. 

Normalmente o segundo gêmeo é morto, mas o Senhor Dimitri achou por bem criar os dois, contra toda a tradição. Este empreendeu viagem à floresta do uivo com os bebês e, quando do seu regresso, afirmou que batizou o segundo bebê com seu sangue, em nome de Nefîrtat, fazendo assim com que a maldição fosse partilhada por ambos. 

Nomeou, pois seus filhos em homenagem ao deus de seus pais, os deuses nórdicos, bem como em homenagem aos deuses da terra, dando nomes duplos para crianças duplas, na esperança de que a tradição de nomes duplos pudesse afastar a morte e a maledicência. Todo ano o pai e a mãe oferecem os gêmeos em sacrifícios simbólicos, deitando seu sangue em bonecos de palha e os imolando quando no solstício de inverno, como forma de purgar o mal, agradar as divindades e enganar o azar.

Apesar de tal procedimento render saúde aos jovens, que cresceram fortes e saudáveis, aos poucos foi percebido que a mãe dos mesmos não mais conseguia parir, tendo abortado inúmeras sementes. Mesmo após vários rituais e cânticos, aparentemente Alísia estava estéril. 

Certa vez, Alísia entrou na floresta guiada por uma visão, e depois de uma tarde lá, banhando-se nas águas de um lago que ela não consegue encontrar de novo, ela voltou pronta para a cópula, tomou seu marido e gerou uma filha, a qual deu instrução específica que deveria se chamar "dada pelos deuses" (Bogdan) e declarou que teve uma visão que não poderia mais gerar rebentos após Bogdan.

Conforme o tempo passava, as crianças cresciam bem e o ímpeto já não tomava tanto os Cioran. Eis que, depois de alguns meses de parida, Alísia contrai nova gravidez, para espanto de todos. O dia que Mircea nasceu foi marcado de eventos: após sua gestação, um exército de moldavos saiu em marcha da floresta e começou a dizimar tudo, tentando conquistar o ducado. 

Pegos de surpresa, todos os guerreiros foram para a batalha. A campanha durou sete meses e, em um dia particularmente fatídico, o comandante Dimitri foi surpreendido por um velho em sua tenda. Após o encontro, Dimitri levou seus 12 melhores homens a marchar circulando a formação moldava, direto para o coração da floresta. Não se sabe o q houve lá, mas desde este dia, os exércitos moldavos foram amaldiçoados de forma tal que a morte lhes veio de variados caminhos: caiam sobre suas espadas, eram picados por insetos venenosos, morriam de disenteria. 

Tal fraqueza abalou o moral, permitindo aos capitães transilvanos retomar a vantagem, mesmo sem Dimitri. Uma semana após sua jornada, já dado como morto, eis que Dimitri volta, pelas costas da batalha, sozinho. Ele bradaou uma palavra de poder, alta o suficiente para calar todo o curso da batalha. "-VaclavZabrat"! e todos os soldados largaram seus postos e fugiram de volta para a floresta, sendo todos mortos.

Ato contínuo, Dimitri instruiu os seus capitães a empalar todos os mortos inimigos, arrancar seus corações e acumulá-los na frente da  entrada da floresta. Com um monte de corações posto na frente da floresta, Dimitri acendeu uma fogueira do lado, sacou sua adaga e derramou seu sangue na fogueira. depois determinou que ninguém saísse de suas casas, se temesse por sua vida.

Ao retornar ao castelo, achou sua mulher em trabalho de parto prematuro. quanto mais o tempo passava, mais tudo se tornava escuro, até que todas as luzes foram apagadas com uma rajada de vento súbito. na escuridão total, ninguém conseguia ver, ouvir ou cheirar nada.

Por um instante que pareceu uma eternidade, tudo silenciou. Até que um choro de criança rompeu o silêncio, alto e estridente: era Mircea. Pouco tempo depois, os archotes foram se acendendo um a um. Na manhã seguinte, no local da fogueira, os corações haviam desaparecido e nas cinzas estava escrito "paz" (Mircea). obviamente que o rapaz foi nomeado após este incidente de Mircea (paz), recebendo o apelido de Agelos Mircea (aquele que traz a paz). [continua...]

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

[reflexão] paradigmas


Imagine algo bem básico seu. Alguma crença, algum hábito ou traço de personalidade; algo que definitivamente faz parte intrínseca de você. Você sente na pele o quanto isso é "você", de tal modo que fica até difícil explicar em palavras o quanto esta determinada coisa faz parte da sua vida, sua personalidade, como isso permeia cada ato seu.

Agora imagine que alguém diz que isso é errado. Que você é uma pessoa errada, má, ignorante, menor ou cidadão de segunda categoria por ter esta crença, hábito ou traço de personalidade. Imagine um grupo organizado sistematicamente atacando algo que lhe é tão normal, belo e natural que você simplesmente não entende porque SEQUER começou a ser atacado.

O que você acha q sentiria? Raiva? ódio? uma injustiça crescente? sucumbiria à depressão ou se voltaria com ardor cego contra seu oponente, mesmo alguns dos argumentos dele até tendo uma marginal razão?

Se você conseguiu se colocar no lugar que propus acima, parabéns: você se colocou no lugar de uma MINORIA. não a minoria estática, real, mas na MENTALIDADE DE MINORIA. Todo grupo de pessoas, diante de um ataque sistêmico assume esta postura - o equivalente social do instinto de lutar ou correr. É natural e humano.

Toda essa discussão homossexual vs crentes resume-se a esta mentalidade: ambos são minorias; ambos se vêem como uma; ambos acham-se oprimidos pelas idéias uns dos outros; e ambos acham que o modo de vida do outro ameaça de morte o seu próprio modo de vida.

Ambos os grupos criam uma situação onde necessariamente a existência de um grupo somente é validada pela inexistência do outro, como se o ato de meramente existir o modo de vida de um ferisse de morte o modo de vida do outro. 

É a aplicação prática do direito do inimigo. E é uma falácia GIGANTESCA, porque a PREMISSA não se sustenta quando comparada com a REALIDADE.

Há sempre a possibilidade de se conviver. Nenhuma situação é mutuamente excludente e as que provavelmente forem, certamente abarcam uma solução melhor do que o extermínio/perseguição sistemática. É só querer e se abrir pra uma realidade maior, mais aberta, baseada na humilde premissa de que TALVEZ a outra pessoa não seja errada; TALVEZ minhas premissas não sejam aplicáveis A TODOS INDISTINTAMENTE e que, bem, talvez o MEU ORGULHO não me deixe ver isso.

 gays, crentes, ateus, esquerda e direita são todos a mesma coisa: convicções.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Wodan - O Andarilho


CAPÍTULO 01 - TRILHA AESIR

Chove pra caralho. A primeira pista que você tem disso é a dor constante em seu ombro direito. Desde que você tomou aquela facada na última vila, o ombro nunca mais foi o mesmo. Estúpido skraeling[1], filho de uma porca, espero que você esteja queimando no colo de Hela com o tridente no cú.

A segunda pista da chuva é que você está encharcado e tendo calafrios constantes.  “-Onde estou mesmo?” você se pergunta. O mundo está escuro e você está escorado em algo duro, sentado provavelmente na relva. O cheiro do olmo denuncia a árvore em que você está escorado. Apesar da floresta cerrada ter ajudado a evitar o pior da chuva, dormir no pé desta árvore definitivamente não é mais uma boa opção.

“-Como eu vim parar aqui?” é a dúvida que ecoa na sua cabeça. Enquanto levanta, você força a memória, e dela só consegue extrair a sensação de que você passa mais tempo escorado em árvores do que deveria... De pé, você tateia ao seu lado até perceber um machado de batalha de duas mãos: “-Olha só, nada mal, nada mal mesmo.” Mais alguns minutos de tateado e o saldo da sua estadia é um machado de batalha, a roupa do corpo, um gibão fedorento (depois de molhado) e uma fome gigantesca. Mover-se é um imperativo.

Tentando ajustar sua visão ao escuro, um relâmpago lhe cega. “-Thor, puto, obrigado por nada!”, é seu murmúrio inconsciente até que você percebe uma trilha mais à frente. Cambaleando, apesar do seu tornozelo reclamar mais do que você esperava, você segue em direção à trilha.

Chuva cerrada mesmo. E agora, trovões. Maravilha.

Olhando ao redor, você percebe que a trilha desce à sua esquerda. Sem muita opção, você se desloca ladeira abaixo. Após caminhar um tempo, uma formação de luzes aponta no horizonte: quem sabe outra vila; com sorte, até uma taberna aberta; com muita sorte, um quarto quente e uma boceta azedinha.

O cheiro da última boceta que você comeu lhe embala a marcha (he he he, a mulher do scraeling até que ofereceu pouca resistência) e quando você decide se informar pra voltar àquela vila, você chega na entrada do lugarejo. A entrada do lugarejo é ladeada de duas árvores grandes, com um portal unindo as duas copas. 

No meio do portal, certamente tem algo escrito, mas nesta escuridão, foda-se o que está escrito. Se bem que você nem lembra se sabe ler. Em cima do portal, um par de chifres enfeita a entrada e, para seu contentamento, uma corda pende logo abaixo, segurando um pacote que você supõe seja um homem adulto.

“-Opa, são dos meus” é o pensamento que acompanha um sorrisinho que brota em seu rosto. Não são todas as vilas atualmente que prestam homenagens tão boas ou tão diretas aos deuses. Viados! Skraelings!

Evitando a poça de dejetos do enforcado, você entra na vila: à sua esquerda, algumas construções simples de pedra, provavelmente casas de famílias pequenas. À direita, algumas construções maiores, também de pedra rasteira, só que cobertas com visco e outros musgos. “Famílias melhores, maiores e com mais dinheiro.” O pensamento do saque é sobrestado pela visão de uma estrutura maior, ao centro do  lugar, mais alta que as demais e cercada de estacas de madeira.

O portão está aberto e lá dentro ouve-se o rumor de pessoas e vê-se a luminosidade de várias tochas e quem sabe uma fogueira grande. Você olha ao redor, para as casas de família também acesas. Certamente seria uma opção bacana para um duro como você, ser devidamente “convidado” a partilhar do teto de uma família. Ou você poderia tentar a sorte na casa grande.

Sabendo das regras que regem as hospitalidades entre os vikings, você rumo em direção à grande estrutura, coxeando, com um olhar determinado, até encontrar a fogueira, quando exclama, com uma voz forte e decidida:

“- Quando um visitante chega, gelado até os ossos, de suas viagem nas florestas e montanhas, ele necessita de fogo, roupa e comida fresca!"[2]

Ao se pôr à porta do salão comunal, sua primeira visão é do fogo: ao centro, em degraus mais baixos e em formato circular, há uma especie de tablado, bem ajambrado em madeira bem serrada; ao centro do tablado, há apenas um buraco de onde ruge uma enorme fogueira, suficiente para aquecer todo o ambiente. 

À  sua esquerda, vários barris empilhados até o teto. Girando para a direita, você imediatamente vê um agrupamento de homens em círculo, gritando extaticamente par algo: provavelmente alguma rinha de animais. Em seguida, algumas estruturas cobertas de peles, onde casais se pegam com ardor e estupor; após a fogueira, há um bar improvisado, de onde as largas taças e cornos vem e vão. 

Agora à sua direita, algumas mesas longas, repletas de homens, mulheres e criança se refestelando em alguma caça enorme: javali ou veado, você não saberia dizer. Era muito grande. No canto extremo direito, por trás de vários sacos que exalavam cheiros diversos (essencialmente tempero e carne salgada), você vê outra roda de homens, mas desta vez eles urram e xingam muito, como se estivessem espancando alguém.

Após sua fala, alguns dos homens envolvidos na comoção do lado direito saem a seu encontro, em um grupo de 3: o da direita, é o mais baixo, e ostenta uma barba ruiva até a virilha, gentilmente colocada sobre seu volumoso bucho; apesar de gordo, o balofo tem braços torneados e largos. Certamente daria uma boa briga, já que briga boa é a que você certamente vence. 

O porco veste um gibão de couro de urso, cobrindo-lhe todo o corpo e não porta arma. O da esquerda, era alto e estava sem camisa: o suor descia-lhe o peito em bicas, e ele arfava um pouco; era magro, louro e jovem, com cara de cabaço ainda. Usava um elmo de chifres que só o fazia parecer mais cabaço. O que lhe preocupava eram as manchas de sangue e merda que infestavam suas calças, peito e botas. 

Agora, o do meio não. Era da sua altura, forte e decidido, com a barba no lugar e uma expressão mordaz no olhar. Seus olhos gritavam “desmembramento-seguido-de-homicídio”, o que meio que lhe impediu de prestar mais atenção a qualquer coisa além do fato dele ter vindo caminhando direto até você, à frente do grupo e portando um machado de batalha pronto para o trabalho.

Pararam a meia distância. Mediram-lhe dos pés à cabeça e, por fim, o do meio falou:

“Que o cauteloso estranho, em busca de refestelo,
reste silente com afiada audição; 
com seus ouvidos deixe-o ouvir; com seus olhos, deixe-o ver, 
Assim cada homem sábio deve vigiar sua direção.”

“-É o nosso caminho.” disse o porquinho gordo. “-É, quem é você?”, perguntou o palito cabaço. “-Calma”, trovejou o de olhos como Fafnir[3]. “-Não estão vendo que o viajante está só e morrendo de frio? Providenciem rápido comida, vinho quente, coberta e duas mulheres para aquecê-lo ao pé da fogueira. Por aqui, sente-se ali. Eu sou Heimdall, e hoje você está conosco, pelo costume antigo.”  

Enquanto lhe conduz para perto do fogo, ele explica, olhando de solsaio para a direita “-Espero somente que não estejas com eles, porque é mau agouro matar convidados.” Na direção apontada você vê um grupo de 6 homens amarrados, nus e brutalmente desfigurados, devido provavelmente a horas de surra. 

Mais próximo do fogo, você percebe algumas armaduras metálicas estranha e alguns “temas” se repetindo em suas inscrições e insígnias: gatos cabeludos amarelos demais, e palitos cruzados demais. 
--------------------------
notas:
[1]: Skraeling ou skrælingar é como os vikings se referiam ao povo dorset da Groenlândia e aos habitantes da América do Norte (Vinland), possivelmente ancestrais do já extinto povo beothuk. Origina-se do norueguês antigo e o significado varia de acordo com os diferentes dialetos da Escandinávia. De modo geral, o radical skral significa "magro" ou "esquelético". Na Noruega, é comumente usado como sinônimo de se sentir fraco ou doente.

[2]: Essa citação, bem como a resposta, estão no hávamál, poema clássico entre os nórdicos: 
"É necessário fogo
para aquele que chegou
e seus pés estão gelados;
de comida e roupas,
o homem necessita,
aquele que viajou das montanhas."

"É necessário água
para aquele que chegou para se alimentar,
de toalha e de um convite,
de boa disposição,
se ele puder conseguir,
com conversa e silêncio em retribuição."

[fonte:http://nibelungsalliance.blogspot.com/2011/04/havamal.html#ixzz2LUf5nuLu]. Gostei da troca entre os personagens, por isso dei 1 de xp a mais :D


[3]Fafnir: anão poderoso e sem medo que depois vira "só" o dragão que Ziegfried tem que matar no clássico "anel de nibelungo".

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Bloqueios criativos, ideias e renascimentos


Como se pode notar, este blog está parado desde seu início. Isso aconteceu porque seu autor, e tudo que à sua criatividade importa, encontra-se desde então em um hiato perpétuo: o famigerado bloqueio criativo.

Não que não tenha ideias - Deus sabe como sou amaldiçoado por elas constantemente - mas o que acontece é simplesmente um descompasso entre o pensar e o agir. Nestes milissegundos que separam a concepção mental e a ação de começar a produzir (que pra mim começa com o botão do Windows do meu teclado) existe o que poderia chamar de uma membrana: anos de frustração e inércia; toneladas de mal costume e preguiça, acumulados em camadas como numa árvore, me fazendo repensar, deixar pra lá, não agir. Tais camadas, como uma poça de piche, vão me sufocando e tragando pra baixo, de volta ao útero agradável e morno da inércia passiva, que mora quilômetros abaixo da linha da mediocridade. 

Ao invés de seguir o ímpeto de criar, me vejo sempre postergando, sempre adiando, sempre dourando a pílula e me dando toneladas de desculpas. "Trabalho", "estudo", "vida pessoal" são as bolas da vez.

Tenho mestrado muito pouco nos dias que se seguiram ao início deste blog porque minha mente, após a geração deste conteúdo, teve um vislumbre do TAMANHO do trabalho que ia dar arquitetar e manter este jogo e num passe inconsciente maquiavélico, vem me sabotando com percepções e ideia acima, me fazendo deixar pra lá, um pouquinho de cada dia, um pouquinho por vez. 

Não sei onde li (acho q foi no cracked.com; sempre é no cracked.com) que esse modo automático/passivo/procrastinador é o padrão de nosso cérebro: encontramos zonas de conforto e jiboiamos nela o máximo possível. Até parece que libera ocitocina, serotonina ou qualquer substância dessas que dê um barato legal na mente.

Só sei que ultimamente ando inquieto, assaltado por idéias. Aos poucos venho vazando-as no meu facebook, para estranhamento dos meus amigos, anotando em txts perdidos entre google drives e dropboxes. Mestrei one-shots (que para os não jogadores de RPG - oi! - são aventuras de uma tarde só. Tipo uma partida de UNO muito grande onde ninguém ganha) dentro do universo no qual as ideias desta campanha foram concebidas e vi os temas e conceitos que pensei anteriormente recorrendo cada vez mais no meu panorama mental. 

Por tudo isso, resolvi o seguinte: Continuar isso aqui, não mais como um blog do jogo, mas sim como um painel onde posso postar o que me vem na cabeça: botar pra fora o que já está quase explodindo aqui dentro. Extravasar a criatividade para ver se consigo ter um pouco de paz de espírito.

Logo, informo que haverá no mínimo 4 tipos de post aqui:

1 - registro de sessões/personagens/memorabília desta já bagunçada campanha de mago: a ascensão;
2 - postagens de idéias aleatórias;
3 - contos que me vem
4 - aos poucos, os primeiros capítulos do livro que sempre tive na cabeça desde 2006.

Espero que dê certo. 

PS: Ah, a forma que consegui encontrar para burlar o bloqueio criativo é escrever sem revisar, sem anotar, sem modificar o texto, em um tiro constante. Logo, vocês verão muitas repetições de termos, de palavras e de estruturas textuais. É como penso. Melhor pra fora errado do que para sempre correto dentro da minha cabeça, né?

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Apresentações onde estas são devidas

Olá! Jogo RPG há muitos anos e o passatempo sempre integrou a minha vida: desde a 6ª série que me aventuro em realidades pessoais com auxilio de livros, dados, papéis e lápis. Comecei no GURPS, a religião que hoje em dia pratico, e desde então nunca precisei sair dele, por sua completude. Até que em meados de 1998 conheci o Storyteller através de seu primal Lobisomem: o Apocalipse. Foi amor à primeira vista. Gostei tanto que mestrei 10 anos de campanhas no tema.

Apesar do meu amor à causa lupina, confesso queem certa ocasião fui totalmente fisgado por um certo livro Roxo, um pouco embolorado, com uma carta de Tarô meio queimada contra um fundo de cetim que prometia aventuras no limite da realidade. Cético, comecei a folheá-lo e quando dei por mim, já estava com ele emprestado em casa, devorando-o (figurativamente).

Lembre de tudo que você sempre pensou, sobre varias coisas da vida, do universo e tudo mais;

Pense em todas as suas viagens, esquisitices, referências (quadrinhos, filmes, livros) e percepções do mundo coexistindo em um só lugar;

Adicione a isso uma miríade de conceitos totalmente novos e fantásticos, expandindo e maximizando as possibilidades do seu velho jogo de sempre;


Agora imagine tudo isso e muito mais perfeitamente sumarizado em quase 400 páginas de jogo.


Este é o Mago: A Ascensão pra mim. Um RPG foda demais.

Vendo a blogosfera, percebi um predomínio - justificado - de material pra D&D em suas infinitas permutações, de alguns sistemas nacionais e algo esparso sobre o novo Mundo das Trevas. Este blog é exatamente sobre o que eu não vi: material para Mago: A Ascensão; Campanhas ou discussões a respeito desta linha ou outras contemporâneas à sua; enfim, algum lugar que agregue o bom e velho Storyteller noventista com seu climão característico.

Exatamente disso que senti falta na blogosfera nacional, um "old school" direcionado ao “Good’Ol Storyteller”. Embora não tão “Old” quanto os retroclones do D&D, há diferenças suficientes entre as versões para justificar a existência de um blog, um lugar para se lembrar daquela atmosfera punk, gótica e – não raro – muitas vezes cômica.

Entrementes, comecei uma campanha de Mago um pouco "gigantesca", a qual pretendo enriquecer ao máximo e manter seu registro: essa é a função primordial deste blog, conforme o próprio título indica: servir/formar a "memorabília" do jogo em duplo sentido, registrando os avanços e deslindes da campanha ao mesmo tempo em que auxilia e instiga a adicionar mais profundidade e elementos ao jogo.

Mestro há 15 anos, mas sempre considerei meus jogos "amadorescos" porque escrevia pouquíssimo, inventava muitas coisas no puro improviso e mantinha tudo borbulhando tão somente na caixola. Querendo pela primeira vez mudar isso, resolvi tornar as coisas "grandiosas", planejando uma campanha longa, intrincada, cheia de personagens e devidamente registrada em seus detalhes, para a posteridade. Desta idéia megalomaníaca/suicida é que surgiu esse blog. 

O que se segue são as agruras e aventuras de 7(!) personas dramáticas trilhando o caminho da mão esquerda, a estrada amarga, galgando desde tempos antigos os dez degraus que separam o chão mundano do céu infinito. Este é o livro de seus dias. Estas são suas memórias despertas: que o jogo se inicie.