quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Wodan - O Andarilho


CAPÍTULO 01 - TRILHA AESIR

Chove pra caralho. A primeira pista que você tem disso é a dor constante em seu ombro direito. Desde que você tomou aquela facada na última vila, o ombro nunca mais foi o mesmo. Estúpido skraeling[1], filho de uma porca, espero que você esteja queimando no colo de Hela com o tridente no cú.

A segunda pista da chuva é que você está encharcado e tendo calafrios constantes.  “-Onde estou mesmo?” você se pergunta. O mundo está escuro e você está escorado em algo duro, sentado provavelmente na relva. O cheiro do olmo denuncia a árvore em que você está escorado. Apesar da floresta cerrada ter ajudado a evitar o pior da chuva, dormir no pé desta árvore definitivamente não é mais uma boa opção.

“-Como eu vim parar aqui?” é a dúvida que ecoa na sua cabeça. Enquanto levanta, você força a memória, e dela só consegue extrair a sensação de que você passa mais tempo escorado em árvores do que deveria... De pé, você tateia ao seu lado até perceber um machado de batalha de duas mãos: “-Olha só, nada mal, nada mal mesmo.” Mais alguns minutos de tateado e o saldo da sua estadia é um machado de batalha, a roupa do corpo, um gibão fedorento (depois de molhado) e uma fome gigantesca. Mover-se é um imperativo.

Tentando ajustar sua visão ao escuro, um relâmpago lhe cega. “-Thor, puto, obrigado por nada!”, é seu murmúrio inconsciente até que você percebe uma trilha mais à frente. Cambaleando, apesar do seu tornozelo reclamar mais do que você esperava, você segue em direção à trilha.

Chuva cerrada mesmo. E agora, trovões. Maravilha.

Olhando ao redor, você percebe que a trilha desce à sua esquerda. Sem muita opção, você se desloca ladeira abaixo. Após caminhar um tempo, uma formação de luzes aponta no horizonte: quem sabe outra vila; com sorte, até uma taberna aberta; com muita sorte, um quarto quente e uma boceta azedinha.

O cheiro da última boceta que você comeu lhe embala a marcha (he he he, a mulher do scraeling até que ofereceu pouca resistência) e quando você decide se informar pra voltar àquela vila, você chega na entrada do lugarejo. A entrada do lugarejo é ladeada de duas árvores grandes, com um portal unindo as duas copas. 

No meio do portal, certamente tem algo escrito, mas nesta escuridão, foda-se o que está escrito. Se bem que você nem lembra se sabe ler. Em cima do portal, um par de chifres enfeita a entrada e, para seu contentamento, uma corda pende logo abaixo, segurando um pacote que você supõe seja um homem adulto.

“-Opa, são dos meus” é o pensamento que acompanha um sorrisinho que brota em seu rosto. Não são todas as vilas atualmente que prestam homenagens tão boas ou tão diretas aos deuses. Viados! Skraelings!

Evitando a poça de dejetos do enforcado, você entra na vila: à sua esquerda, algumas construções simples de pedra, provavelmente casas de famílias pequenas. À direita, algumas construções maiores, também de pedra rasteira, só que cobertas com visco e outros musgos. “Famílias melhores, maiores e com mais dinheiro.” O pensamento do saque é sobrestado pela visão de uma estrutura maior, ao centro do  lugar, mais alta que as demais e cercada de estacas de madeira.

O portão está aberto e lá dentro ouve-se o rumor de pessoas e vê-se a luminosidade de várias tochas e quem sabe uma fogueira grande. Você olha ao redor, para as casas de família também acesas. Certamente seria uma opção bacana para um duro como você, ser devidamente “convidado” a partilhar do teto de uma família. Ou você poderia tentar a sorte na casa grande.

Sabendo das regras que regem as hospitalidades entre os vikings, você rumo em direção à grande estrutura, coxeando, com um olhar determinado, até encontrar a fogueira, quando exclama, com uma voz forte e decidida:

“- Quando um visitante chega, gelado até os ossos, de suas viagem nas florestas e montanhas, ele necessita de fogo, roupa e comida fresca!"[2]

Ao se pôr à porta do salão comunal, sua primeira visão é do fogo: ao centro, em degraus mais baixos e em formato circular, há uma especie de tablado, bem ajambrado em madeira bem serrada; ao centro do tablado, há apenas um buraco de onde ruge uma enorme fogueira, suficiente para aquecer todo o ambiente. 

À  sua esquerda, vários barris empilhados até o teto. Girando para a direita, você imediatamente vê um agrupamento de homens em círculo, gritando extaticamente par algo: provavelmente alguma rinha de animais. Em seguida, algumas estruturas cobertas de peles, onde casais se pegam com ardor e estupor; após a fogueira, há um bar improvisado, de onde as largas taças e cornos vem e vão. 

Agora à sua direita, algumas mesas longas, repletas de homens, mulheres e criança se refestelando em alguma caça enorme: javali ou veado, você não saberia dizer. Era muito grande. No canto extremo direito, por trás de vários sacos que exalavam cheiros diversos (essencialmente tempero e carne salgada), você vê outra roda de homens, mas desta vez eles urram e xingam muito, como se estivessem espancando alguém.

Após sua fala, alguns dos homens envolvidos na comoção do lado direito saem a seu encontro, em um grupo de 3: o da direita, é o mais baixo, e ostenta uma barba ruiva até a virilha, gentilmente colocada sobre seu volumoso bucho; apesar de gordo, o balofo tem braços torneados e largos. Certamente daria uma boa briga, já que briga boa é a que você certamente vence. 

O porco veste um gibão de couro de urso, cobrindo-lhe todo o corpo e não porta arma. O da esquerda, era alto e estava sem camisa: o suor descia-lhe o peito em bicas, e ele arfava um pouco; era magro, louro e jovem, com cara de cabaço ainda. Usava um elmo de chifres que só o fazia parecer mais cabaço. O que lhe preocupava eram as manchas de sangue e merda que infestavam suas calças, peito e botas. 

Agora, o do meio não. Era da sua altura, forte e decidido, com a barba no lugar e uma expressão mordaz no olhar. Seus olhos gritavam “desmembramento-seguido-de-homicídio”, o que meio que lhe impediu de prestar mais atenção a qualquer coisa além do fato dele ter vindo caminhando direto até você, à frente do grupo e portando um machado de batalha pronto para o trabalho.

Pararam a meia distância. Mediram-lhe dos pés à cabeça e, por fim, o do meio falou:

“Que o cauteloso estranho, em busca de refestelo,
reste silente com afiada audição; 
com seus ouvidos deixe-o ouvir; com seus olhos, deixe-o ver, 
Assim cada homem sábio deve vigiar sua direção.”

“-É o nosso caminho.” disse o porquinho gordo. “-É, quem é você?”, perguntou o palito cabaço. “-Calma”, trovejou o de olhos como Fafnir[3]. “-Não estão vendo que o viajante está só e morrendo de frio? Providenciem rápido comida, vinho quente, coberta e duas mulheres para aquecê-lo ao pé da fogueira. Por aqui, sente-se ali. Eu sou Heimdall, e hoje você está conosco, pelo costume antigo.”  

Enquanto lhe conduz para perto do fogo, ele explica, olhando de solsaio para a direita “-Espero somente que não estejas com eles, porque é mau agouro matar convidados.” Na direção apontada você vê um grupo de 6 homens amarrados, nus e brutalmente desfigurados, devido provavelmente a horas de surra. 

Mais próximo do fogo, você percebe algumas armaduras metálicas estranha e alguns “temas” se repetindo em suas inscrições e insígnias: gatos cabeludos amarelos demais, e palitos cruzados demais. 
--------------------------
notas:
[1]: Skraeling ou skrælingar é como os vikings se referiam ao povo dorset da Groenlândia e aos habitantes da América do Norte (Vinland), possivelmente ancestrais do já extinto povo beothuk. Origina-se do norueguês antigo e o significado varia de acordo com os diferentes dialetos da Escandinávia. De modo geral, o radical skral significa "magro" ou "esquelético". Na Noruega, é comumente usado como sinônimo de se sentir fraco ou doente.

[2]: Essa citação, bem como a resposta, estão no hávamál, poema clássico entre os nórdicos: 
"É necessário fogo
para aquele que chegou
e seus pés estão gelados;
de comida e roupas,
o homem necessita,
aquele que viajou das montanhas."

"É necessário água
para aquele que chegou para se alimentar,
de toalha e de um convite,
de boa disposição,
se ele puder conseguir,
com conversa e silêncio em retribuição."

[fonte:http://nibelungsalliance.blogspot.com/2011/04/havamal.html#ixzz2LUf5nuLu]. Gostei da troca entre os personagens, por isso dei 1 de xp a mais :D


[3]Fafnir: anão poderoso e sem medo que depois vira "só" o dragão que Ziegfried tem que matar no clássico "anel de nibelungo".

Nenhum comentário: